Foi ela e o Chico Mineiro
Precisamos de algumas vidas para aprendermos a lidar com a morte, e outro tanto de vidas para aprendermos a viver. Minha avó, Ana Furlanetto de Souza, parecia saber viver... Ela gostava de viver.
Faleceu no último dia 16 de novembro, aos 102 anos; pelo menos é o que se conta no documento de identidade. Viveu seus últimos 26 anos por aqui, em casa de meus pais, chegada de mudança que meu avô, em seu leito de morte, aconselhou. Perspicaz como poucos, Pedro Bento de Souza vislumbrou que
não faltaria quem cuidasse de minha avó numa casa com 10 netos.
Assim, tive o privilégio de crescer e amadurecer meus anos bem pertinho dela, tentando entender a vida. Dizíamos, vaidosos, meu irmão mais novo e eu, que a receita de sua longevidade eram nossas incansáveis caçoadas de moleques. Pilhérias com que talvez meu avô não contasse.
A gente escondia as coisas dela e, desidiosos, só fechávamos as “gretas da janela” depois que ela ameaçava levantar da cadeira, já exaltada e com o coração na boca. Acreditávamos, incautos, que assim estaríamos ajudando-na a rejuvenescer seus dias de ócio. Coisa de criança, Jefinho, este meu irmão mais novo, certo dia olhou para cima e deu valorosos conselhos para ela: “Vó, se a Sra. andar direitinho, com cuidado, e não for atropelada, vai viver até 100 anos”. Ela soube viver mais de 100 anos.
Só foi conhecer a velhice com 93 anos de idade, quando acordou sem despertador às 7h30 da manhã, escancarou a janela, abriu a porta e começou a “arrumar” suas coisas. Eram porta-retratos disputando atenção com uma caneca verde-limão, um frasco de Ciloxan, uma caixa de perfume, um falso antúrio, um castiçal e duas velas gastas sobre uma toalhinha rendada. Ela arrastou sua arcada curva pelo quarto e depois sentou-se em sua cama percebendo uma reação inédita em seu corpo; estava tremendo. Tremendo muito.
Enrijeceu os músculos, atrofiou os membros inferiores e começou a ofegar alto e suplicante; uma armação trêmula, agonizante e frágil. Foi vestida e levada para o pronto-socorro. Dias antes estava tomando um remédio orientado pelo médico para combater a ansiedade, porém o remédio acabara e, nesse retorno às pressas, foi diagnosticado: “a vovó está com síndrome do pânico”.
Naquele dia eu comecei a me preparar para essa despedida da última sexta-feira. Tomei nota de que ela não era eterna por aqui, ao mesmo tempo em que a percebia sábia na forma como vivia. Ela sabia viver.
Filha de italianos da imigração desenfreada no fim do século XIX, dizia já ter tido “lua na barriga”, simioto e tudo quanto era maleita. Contava que morou em convento; trabalhou de babá; pegou fila para comprar pão durante a Revolução de 32 e se escondeu em porões durante bombardeios; seduziu mulatos, italianos e espanhóis; trabalhou na lavoura do café, do algodão… E por aí vai… Foram 102 anos.
Não largava a “borsa” por nada deste mundo! Previa tempestades que só existiam na cabeça dela, pois não passavam de chuviscos, na maioria das vezes, mesmo assim ela achava prudente ter a “borsa” por perto, com velas e fósforos, para o caso de acabar a energia.
Guardava seu cabelo caído para avolumar o penteado, furtava alfinetes, escondia um lencinho sob a alça do sutiã e cantava a melancólica “Chico Mineiro”, curiosamente, “prá espantá a tristeza”.
Foram pedaços de vida observados atentamente por uma criança do interior. Ela sabia viver.
Ana Furlanetto de Souza (14 de setembro de 1916 + 16 de novembro de 2018)
Despediu-se de 5 filhos, 23 netos, 32 bisnetos e 6 tataranetos.
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